Construção
civil ou incivil?
Considerações
a propósito do troço «final» do IC3
Adelaide
Chichorro Ferreira,
presidente
do núcleo de Coimbra da Quercus
(escrito a 29.8.2012 mas só agora aqui publicado)
1.
Esta auto-estrada (IC3) não é uma prioridade
2.
Argumentos contra a Tese A
3.
Argumentos contra a Tese B
4.
Restantes argumentos.
5.
Interrogações finais
1. Esta
auto-estrada (IC3) não é uma
prioridade
Haverá
neste
momento condições para concluir a construção duma terceira
auto-estrada
entre Lisboa e o Porto, no que se refere ao troço «final» do
IC3, que vai desde
Condeixa até à Mealhada, passando por Ceira, Coimbra e Souselas?
Deverá ser
essa a prioridade da nossa região? Dificilmente.
Exponho
neste
texto alguns argumentos em abono desta convicção, porque mais
vale tarde do
que nunca: não é correto abster-me de emitir opinião sobre esta
matéria, na
qual não intervenho como especialista em transportes ou autarca,
mas como
cidadã. Deliberadamente não entrarei em assuntos de cariz
económico-financeiro
ou jurídico, uma vez que o que me faz escrever é a necessidade
de contestar
duas teses frequentemente apresentadas, neste e noutros
contextos, por
jornalistas, autarcas e políticos, como se fossem verdades
absolutas.
Tese A:
«Uma
obra deve fazer-se se der empregos na construção civil».
Tese B:
«Uma
obra deve fazer-se se já só faltar um bocadinho para ela ficar
pronta».
2.
Argumentos contra a Tese A
À Tese A contraponho
as seguintes
ideias, assumindo a terceira uma posição de destaque, uma vez
que explica o
título que escolhi para o presente texto:
─
Em
primeiro lugar, uma obra deve fazer-se se for útil e se
fizer sentido, e há
momentos em que algo faz sentido, outros em que não. Se não
houver dinheiro não
faz sentido, por isso antes de se lançar uma obra esse aspeto
deve estar
esclarecido.
─
Em
segundo lugar, os empregos na construção civil não são
mais importantes do
que os outros, e sobretudo têm de se tornar úteis, algo que pode
exigir mudanças.
Se pomos todo o dinheiro numa nova auto-estrada, é de esperar
que ele vá faltar
para conservar as (auto-)estradas e os edifícios que já temos.
Por cada obra
nova arriscamo-nos a perder prematuramente outras já existentes,
da mesma forma
que por cada área de trabalho que se beneficia, outras há que
ficam a perder.
Se tal não resultar de saudável competição mas de enviesamento
estrutural
causador de injustiças e desperdícios, convém aprofundar o
assunto.
─
Em
terceiro lugar, «construção civil» é muito mais do que
aquilo que sobre
este conceito mais se diz nos media, os quais funcionam muitas
vezes como
veículo de relações públicas para as empresas mais bem
posicionadas. Proponho portanto
para este conceito a seguinte definição:
Uma
obra
é de construção civil se o que de mais relevante com
ela se
consegue é algo que sirva a sociedade, e será de construção
incivil se o
que de mais relevante ela produz for a destruição desse algo
que serve a
sociedade.
Mesmo
esta
definição se torna insuficiente à luz duma consciência ambiental
mais ampla,
que não contemple apenas as necessidades da sociedade tal como a
conhecemos,
mas também as das gerações futuras, incluindo de todos os outros
seres que connosco
partilham o planeta. Poderão os técnicos do ramo argumentar que
é impossível
construir sem destruir, que qualquer que seja a obra ou
realização humana,
sempre se destrói alguma coisa, havendo impactes
ao lado de cada impacto.
Porém, a
palavra impacto é
demasiado bem vista
na nossa sociedade: o que tem impacto, por ser «chamativo», é
invariavelmente
encarado como positivo, mesmo que destrua. O lado B do impacto é
o impacte
ambiental, e esse pode ser desproporcionadamente elevado para o
fim em vista,
destruindo serviços mais importantes do que os benefícios
trazidos por
determinada obra.
3. Argumentos contra a Tese B
Já
quanto
à Tese B contraponho os seguintes argumentos:
─
Em
primeiro lugar, no caso duma auto-estrada parece-me
adequado estabelecer como
regra que ela fique «completa» até onde for feita, uma vez que
se trata duma
obra em extensão, e portanto de alcance variável. A sua não
conclusão acarreta simplesmente
a consequência de não se poder andar depressa em todo o seu percurso, mas apenas em
parte dele. Neste caso o bom não é inimigo do óptimo, uma
vez que permitir
velocidades muito elevadas, com grande impacto em termos de
ruído ou de
poluição, às portas duma cidade, tem obviamente consequências
negativas para a
sociedade. Além disso, se o óptimo de uns é poder acelerar à
vontade, o de outros
equivale a não se ser obrigado a conduzir depressa, sobretudo às
portas da
cidade. Um excesso de auto-estradas pode portanto causar o
isolamento, a imobilidade
e a perda de autonomia de alguns utentes, porque há muito quem
as evite ─ e
refiro-me sobretudo à população idosa, cuja liberdade de
conduzir em segurança
não deveria ser cerceada desnecessariamente, sobretudo havendo
já inúmeros
locais onde se pode andar depressa.
─
Em
segundo lugar, se é fácil determinar que uma auto-estrada
está concluída
onde quer que ela termine (há auto-estradas compridas e outras
curtas), já o
mesmo não se pode dizer dum edifício semi-construído, que ou se
implode (custa
dinheiro apagar os erros do passado), ou se termina (o que
também custa
dinheiro). Trata-se aqui de duas realidades diferentes, a exigir
uma ponderação
também ela diferenciada: uma auto-estrada não terminada não
deixa de poder ser
usufruída, desde que possua acessos. Já um edifício sem janelas,
portas ou
telhados não é de todo utilizável. Neste caso não é sequer
rigoroso dizer que
se «construiu um edifício», porque o que quer que se tenha
construído não passa
duma construção inacabada. Ao contrário dum edifício sem
telhado, que pode até existir
mas não pode ser usado (e ao contrário dum romance lido apenas
aos bocados, sem
se perceber a história), uma auto-estrada não precisa de ser
percorrida mesmo
até ao seu hipotético ou planeado extremo para que se possa
afirmar que é útil.
─
E que
dizer de infraestruturas que não podem ser utilizadas porque
outras de que elas
dependem não chegaram sequer a ser construídas?
Independentemente de os
conseguirmos ler até ao fim ou não, uma coisa é certa: ter livros sem saber ler é como construir estações de
comboios sem que
exista a ferrovia! Precisamente por isso é que, em
terceiro lugar,
invoco aqui o caso das várias infraestruturas de embarque já
construídas como
apoio duma ferrovia que em dado momento deixou de estar prevista
para a área
urbana de Coimbra e arredores ─ a mesma região onde agora se
quer construir o
tal troço ainda «em falta» do IC3. Se essas construções já
existem, mas ainda
não têm utilidade, o que há a fazer é repor a ferrovia, mas irá
em vez disso o
dinheiro ser gasto em mais uma auto-estrada?
─
Quarto
argumento: poderia argumentar-se que entre o projeto do
metro de superfície
(que parece estar para ser retomado) e o da construção do IC3, a
auto-estrada seria
mais importante, uma vez que as pessoas em geral recorrem ao
automóvel. Contesto:
muitos até prefeririam, se pudessem, usar o comboio, pois dessa
forma se pode
ir tranquilamente a ler ou a escrever e o tempo gasto no
transporte seria ganho
em tranquilidade, produtividade e em cultura, ao contrário do
que sucede com o
automóvel, em que se fica impedido de trabalhar, a menos que por
trabalho se
entenda (não sem danos colaterais!) falar ao telemóvel enquanto
se conduz,
usando ou não o dispositivo «mãos livres».
4. Restantes argumentos
Tendo
já discutido
os dois principais pressupostos de autarcas da região em favor
da conclusão do
IC3 (ou seja, a tese A e a tese B), passarei agora a inventariar
toda uma série
de argumentos que aprofundam as considerações anteriores e que
sustentam as minhas
reservas relativamente à construção do troço supramencionado do
IC3.
1.
Falando sobretudo com moradores potencialmente afetados
pelo barulho e
poluição causados pela rodovia na estrada dos Malheiros,
apercebi-me de que a
construção da dita auto-estrada não é tão consensual como se
apresenta na
imprensa.
2.
Disse-me também há tempos o presidente da Junta de
Freguesia de Ceira,
zona onde está previsto que termine o troço do IC3 a construir
(incluindo um dispendioso
viaduto ou túnel), que o impacto da referida construção naquela
freguesia irá
ser enorme, afetando o modo de vida de viveiristas há muito ali
instalados, prejudicando
igualmente uma paisagem que duvido possa ficar mais bonita se
estrangulada por mais
uma «obra de arte» (termo técnico para designar uma ponte ou
viaduto unindo
dois montes ou duas margens de um rio).
3.
Também não sabemos qual o impacto da crise económica no
comportamento
rodoviário, mas é notório que se viaja menos e que muitas
pessoas evitam auto-estradas
para não pagarem portagens. Questiono-me se os estudos de
tráfego usados para
justificar este tipo de rodovia ainda estão atuais.
4.
Porque é que não construimos antes ciclovias, que
permitiriam poupanças significativas
em muitos trajetos casa-trabalho, aliás fomentando com isso
provavelmente mais viagens
de carro nas auto-estradas ao fim-de-semana, e tornando-as mais
comportáveis
para os nossos salários? E se em muitas cidades europeias o
limite de
velocidade é de 30km/h em zonas residenciais, porque não
aspiramos nós aos mesmos
direitos a maior poupança, qualidade de vida e sossego?
5.
É duvidoso que a construção do troço em causa do IC3 traga
benefícios relevantes
para além dos empregos criados durante a construção. O facto é
que mesmo empregos
que antes havia nas auto-estradas têm vindo a ser cortados:
agora o pagamento
de portagens é feito por intermédio de máquinas, e não com a
intervenção de um
funcionário. Devemos premiar tais políticas?
6.
Os empregos na construção poderiam aliás ser
disponibilizados em obras mais
relevantes, como é o caso da recuperação do património, desde
que com
conhecimento avançado (por exemplo em argamassas antigas, para
não se cometerem
erros resultantes de excessiva pressa em mostrar «obra feita»).
7.
Há imensas outras actividades fortemente negligenciadas:
quando se
constrói uma infraestrutura rodoviária, é ainda hábito deixar os
espaços
adjacentes por arranjar, permitindo a sua inadequada apropriação
por marginais
ou delinquentes. Isso aconteceu na zona da Boavista, no local
onde entronca a
ponte Rainha Santa Isabel, espaço este há largos anos a carecer
de arranjo
urbanístico. Se tanto se quer acabar o que está por concluir,
como se disse do metro
de superfície e agora se diz do IC3, porque não se começa por
estes pequenos
arranjos que há bem mais tempo estão ainda por concluir?
8.
A construção civil não tem apenas a ver com grandes obras,
mas com muitos
minúsculos detalhes: quando se parte uma peça dum portão é
necessário alguém que
a consiga repor, e não alguém que nos forneça um portão novo. Um
vidro partido
duma lareira requer quem esteja em condições de o substituir,
sem se ter de
construir uma lareira nova. As chaminés precisam de ser
periodicamente limpas e
esse trabalho atualmente encontra-se a cargo dos bombeiros, que
o fazem mais por
boa vontade do que por tal ser exclusivamente competência sua.
9.
Além da ponte pedonal recentemente construída em Coimbra,
em que os
vidros já necessitam de ser reparados, há inúmeros muros e
paredes antigas a
precisarem de ser restaurados, muito asfalto por repor, muita
sinalética
relevante por colocar (e outra irrelevante por retirar),
pinturas rodoviárias
desgastadas, passeios cobertos de ervas. Uma cidade
cromaticamente harmoniosa e
segura é muito mais agradável do que a magnificência duma grande
obra que
apenas beneficia o ego e a bolsa de alguns, mas com a área
circundante
desleixada.
10.
Há cada vez mais pessoas idosas, com dificuldade em
dobrar-se, desejosas
de fazer pequenos jardins ou hortas nas imediações das suas
casas, para que
mais facilmente possam alimentar-se e com o dinheiro que poupam
nesta «terapia florístico-nutricional»
comprar eventuais medicamentos de que dependam. Haverá gente
habilitada nas
técnicas de construção de canteiros elevados, paredes e telhados
verdes, hortas
comunitárias em zonas urbanas, que as possam ajudar? Tudo isso
são atividades
em que a construção civil poderia desempenhar um papel bem mais
relevante do
que apenas o de disseminar por todo o lado cimento e asfalto,
com os impostos
de todos nós.
11.
A construção civil não tem que ser toda feita em betão: há
técnicas que
passam pela utilização de madeira, adobe ou até de telas
têxteis. Cada vez mais
necessitamos de obras que não sejam «marcantes» mas antes
susceptíveis de
libertar o espaço ao fim de algum tempo de utilização. Mais vale
por vezes uma
bonita tenda, desde que desmontável, reutilizável e reciclável,
do que um
elefante branco inamovível, que nos endivida até ao tutano.
5. Interrogações
finais
Se
com
tanta infraestrutura entretanto construída, e portanto com menos
razões para
isso, o poder político já por uma vez ousou adiar o projecto do
metro de
superfície, não será agora muito mais justificável adiar sine die a construção do referido troço do IC3,
transferindo os
fundos estruturais e os empregos com ele gerados para onde eles
realmente fazem
mais falta? Até que ponto estamos livres de que por falta de
financiamento se
ponha em causa a decisão recente de retomar o metro de
superfície (ou algo que
se lhe assemelhe)? Quantos proveitos, e a que preço, cabem
afinal no saco da
construção civil sustentável em Coimbra?